Por que existem anjos e meninos Jesus em muitas telas da Idade Media?
Artistas da Idade Média e do Renascimento pintaram vários anjos e Meninos Jesus com traços característicos de portadores da trissomia 21. Esse fato, surpreendente para alguns, pode ser observado em muitas telas. O que levou esses artistas a buscar nas crianças especiais o modelo de rosto humano a ser dado para seres celestiais?
Uma parte das explicações tem a ver com as histó pessoais dos artistas e também com uma sociedade, que durante a Idade Média, reservou um lugar socialmente orgânico para portadores de deficiências física ou mental. Eles estão presentes ao lado de papas, bispos, reis, nobres e cavaleiros, num grande número de quadros da Idade Média e do início do Renascimento. Era algo normal naquela época. Estão ali porque fazem parte da sociedade, ao mesmo título que outros indivíduos e “métiers”. Isso ilustra, de um lado, o nível de integração social das pessoas excepcionais naquelas sociedades. Por outro lado, é insuficiente para explicar a presença de traços de trissomia do 21 em anjos e Meninos Jesus.
Uma das explicações estaria no fato de muitos artistas plásticos do Renascimento terem vivido uma experiência traumatizante para sua mentalidade religiosa. Uma bela criança – que havia servido de modelo para pintar um Menino Jesus na mangedoura ou nos braços de Maria ou ainda um anjo ou querubim – ao crescer tornava-se um criminoso ou um assassino da pior espécie. Quantos artistas não devem ter ouvido, como uma terrível reprovação: – Olha aí no que deu o seu modelo de Menino Jesus!
Onde, entre os humanos, achar um modelo de angelical atitude que fosse perene? Para alguns desses artistas, ao invés de construir um rosto e um corpo imaginário para seus anjos e Meninos Jesus, o modelo estava nos portadores da Síndrome de Down. Nessa perspectiva, eles nos brindaram com uma série de Meninos Jesus, Anjos e até Marias com traços característicos dos portadores da trissomia 21.
É fantástico que no famoso quadro “O quarto dos esposos” – pintura realizada num quarto nupcial, inserida no contexto das cortinas e da cama – o artista tenha reproduzido, na cabeceira do casal, um anjo com asas de borboleta (sinal da transformação da lagarta em borboleta, símbolo da ressurreição) e com traços da trissomia 21. Um anjo, aliás, parecidíssimo com várias crianças especiais que nós conhecemos e amamos.
No caso do “anjo do quarto dos esposos” e do Menino Jesus com a Madona de Mantegna, disponíveis nesta página, até detalhes biométricos característicos da maioria das crianças trissômicas – como a inserção da orelha na cabeça, a relação entre o comprimento dos dedos e a palma da mão e, sobretudo, a distância maior entre o dedão do pé e os demais dedos – foram rigorosamente respeitados e reproduzidos.
Em última instância, vale relembrar: graças a esse testemunho vivo, terno e eterno dos artistas houve tempo em que, não somente essas pessoas deficientes eram acolhidas socialmente, como eram tidas como modelos de santidade e padrão de divinas criaturas.
Alguns pesquisadores, como Siegfried M. Pueschel, relutam em afirmar que tais representações nas artes plásticas tenham, de fato, se inspirado em portadores da Síndrome de Down. “A constatação antropológica mais antiga que se conhece da Síndrome de Down tem sua origem, provavelmente, na escavação de um crânio saxão, que remonta ao século VII. O crânio mostra alterações em sua estrutura, que só costumam aparecer em crianças portadoras de Síndrome de Down. Alguns crêem que, no passado, existiram representações pictóricas e esculturais desta afecção. Por exemplo, se pensou que os traços faciais das chamadas figuras da cultura Olmec, de 3.000 anos atrás, se assemelhavam aos das pessoas com Síndrome de Down. No entanto, resulta duvidosa esta afirmação, se se examinam cuidadosamente estas figuras”, escreve Pueschel no livro “Síndrome de Down, Hacia un futuro Mejor”, Ed.Masson-Salvat, Barcelona, Espanha, 1991.
Considerando que a deficiência foi descrita pela primeira vez somente no final do século passado, por John Langdon Down, e comprovada em sua origem genética apenas na metade deste século, pelo geneticista francês Jérôme Lejeune, é evidente que não haviam cariótipos para confrontar com os traços e a expressão corporal retratada pelos artistas e frequentemente inspirada em modelos reais.
Seja como for, alguns anjinhos, Meninos Jesus e nobres, imortalizados pela pintura, de fato apresentam a expressão facial, os olhos amendoados, o rosto achatado, os braços gordinhos e as mãos curtinhas das crianças trissômicas. Mesmo o contorcionismo dos anjos barrocos – que antes nos pareciam mero fruto da imaginação dos pintores – agora reconhecemos na realidade, sempre que observamos o dorso arqueado para trás e as poses bailarinas do nosso Daniel, dormindo no berço!
Assim, para que cada um tire sua própria conclusão, reproduzimos aqui alguns desses quadros. E estamos à procura de outros. Caso você tenha alguma sugestão, mande uma mensagem para nós, Liana John ou Evaristo de Miranda.